Gonçal Mayos PUBLICATIONS

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Nov 2, 2014

TURBOGLOBALIZAÇAO E OS 'FENOMENOS INTER'

 

Observamos uma correlação significativa entre a atual turboglobalização e os três importantes fenômenos contemporâneos estudados neste simpósio: interculturalidade, interconstitucionalidade e interdisciplinaridade. Por razões de espaço, vamos comparar e analisar, principalmente, os dois primeiros aspectos. Vamos deixar para outro momento a análise concreta da interdisciplinaridade.
 
Nossa tese é que as sociedades atuais –globalizadas e em rápida mudança– geram profundos “fenômenos inter”, os quais constituem algumas de suas características mais complexas, definidoras e causadoras de novos desafios e conflitos. Concretamente, muitos antagonismos sociais, tanto no plano nacional como no internacional, aparecem cada vez mais vinculados a esses novos “fenômenos inter”.

 
"Fenômenos inter": combinações para além do “multi”, “poli” ou “trans”.
 
 
Usamos o termo “fenômenos inter", não só por causa da flexão morfológica semelhante presente em termos como intercultural, interconstitucional ou interdisciplinar. Vamos utilizá-lo, sobretudo, porque essa denominação explicita que se caracterizam pela crescente mescla –em alguns territórios e âmbitos sociais– de fenômenos culturais, constitucionais ou disciplinares que até agora tendiam a manter-se separados por fronteiras relativamente claras e estáveis.
 
São pois “fenômenos inter” por diagnosticar e exigir complexas estratégias de integração e diálogo que vão mais além da tolerante justaposição (análise “multi” ou “poli”) e inclusive do cruzamento pontual das fronteiras (análise “trans”). Representam um salto qualitativo em relação a muitos processos que são fruto da concorrência internacional, da mundialização e de um marco geográfico global em crescente integração. Isso porque não apenas aproximam e fazem competir mais estreitamente diferentes realidades sociais, políticas, culturais, constitucionais e disciplinares; mas porque as mesclam tão profundamente que obrigam a combinações e inter-relações muito mais profundas e complexas.
 
São, portanto, “fenômenos inter” e não meramente “multi”, “poli” ou “trans”, já que obrigam a fortes dialéticas, misturas e integrações. Na intensa mescla que a atualidade gera, já não basta, por exemplo, um multiculturalismo que simplesmente justaponha as etnias e os grupos culturais fomentando a tolerância e a convivência pacífica. Se fazem cada vez mais necessárias estratégias interculturais baseadas em um efetivo diálogo, no completo reconhecimento mútuo e em crescentes mestiçagens.
 
Tampouco podem bastar a convivência de distintas legitimidades, princípios e concepções “materiais” de justiça, diversamente aplicadas segundo seus âmbitos ou grupos sociais. Cada vez mais, sobre essas bases importantes e que representam benefícios que não podemos negligenciar, há que se construir complexos processos interconstitucionais que unam aquelas diversas legitimidades e bases jurídicas em um novo marco –antes não existente– que as faça dialogar e avançar em um projeto comum que –não obstante– não as dissolva nem subordine opressivamente.
 
Também consideramos que no mundo das disciplinas acadêmicas cada vez se tende a ir mais além das muito louváveis propostas “multi”, “poli” e inclusive “transdisciplinares” (Cross-disciplinarity). O complexo mundo turboglobalizado e a redução dos rendimentos marginais na investigação tradicional, obrigam cada vez mais a investigações mais interdisciplinares e inclusive – tendencialmente – pós-disciplinares. Cada vez é maior a necessidade de investigações e de sínteses que reúnam múltiplas disciplinas ou paradigmas, que cruzem em todas as direções as fronteiras acadêmicas e que integrem interdisciplinarmente as problemáticas e teorias.
 
 
Causas
 
 
Entre as causas desses “fenômenos inter", tão importantes para o presente, podemos destacar:
 
Em primeiro lugar, existem razões econômicas como: os deslocamentos industriais, a crescente dificuldade para controlar os fluxos financeiros globais, a imparável concorrência econômica e tecnológica internacional, etc.
 
Em segundo lugar, existem causas geopolíticas, que incluem: mudança de hegemonias; desaceleração no primeiro mundo (Estados Unidos em crescente déficit, a apatia da "velha Europa", a persistente crise nos chamados PIGS); emergência de novas potências mundiais (como a China) e/ou líderes nas principais regiões (por exemplo, Brasil e os outros BRICS ou BRIMCK (adicionando Coréia do Sul e México), países emergentes como a Nigéria...); fraqueza do Estado-nação; processos de integração regional; choque de civilizações, etc.
 
Em terceiro lugar, há causas que surgem de tensões demográficas significativas, tais como a imigração imparável, a difícil coexistência de demografias em redução (como na Europa) e em grande expansão em outros países, etc.
 
Finalmente, destacamos causas socioculturais: novos tipos de cidadania; politização das novas gerações de direitos; crescente pressão dos Novos Movimentos Sociais; estabelecimento de novas identidades nômades e/ou desterritorializadas graças às Tecnologias da informação e comunicação; etc.
 
 
Impacto da "turboglobalização" e a "sociedade do conhecimento pós-industrial".
 
Consideramos que as causas assinaladas impulsionam processos de mudanças aceleradas, de novos conflitos e de “fenômenos inter” muito complexos, nosso objetivo de estudo neste artículo. Sejam eles interculturais, interconstitucionais ou interdisciplinares, os “fenômenos inter” nascem de essas novas causas, processos e mecanismos que –para simplificar- denominamos “turboglobalização” e “sociedade pós-industrial do conhecimento”.
 
Certamente hoje qualquer região, território ou população do mundo está competindo com todo o mundo. Os contatos se realizam à enorme velocidade dos aviões e à superior velocidade das decisões econômicas e dos fluxos financeiros. Mas não se trata apenas do fato de que a Terra é já uma realidade global e que todas suas regiões e territórios estão em constante relação entre si.
 
Cada vez mais, nos mesmos territórios, se encontram e mesclam realidades que até pouco basicamente se davam em âmbitos territoriais que – quando muito – tão somente se superpunham em zonas disputadas e fronteiriças. Hoje, ao revés, compartem e disputam um mesmo território que ademais as novas gerações percebem, com legitimidade, como totalmente próprio (como tem acontecido com os Pieds-Noirs o argelinos na França, etc.).
 
 
Sem dúvida, as imigrações, mas também as novas Tecnologias da informação e comunicação e a Sociedade em Rede fazem com que as antigas territorialidades se rompam e que culturas ou etnias se superponham crescentemente, compartam territórios (ali onde antes cada uma era muito hegemônica e as outras muito minoritárias) e inclusive interajam complexamente na identidade das pessoas. Por exemplo, eu mesmo sou de língua materna catalã, mas grande parte de mina produção intelectual é em castelhano – pois sou bilíngue – e em grande medida esta é a minha língua internacional (especialmente em contextos irmãos, como aqui em Portugal o em Brasil).
 
Portanto, a atual sociedade do risco (teorizada por Ulrich Beck) vem profundamente marcada pelos macroprocessos e causas mencionadas. Por um lado, o mundo se tornou menor, mais inter-relacionado e dependente; por outro, o mundo está se tornando mais diverso territorialmente, culturalmente, do juridicamente, etnicamente –e inclusive– disciplinarmente. Por isso afloram os mencionados “fenômenos inter”, e cremos que deve-se encará-los indo mais além de propostas “multi”, “poli” ou “trans”. Cremos que estes, apesar de serem enfoques louváveis, se mostram atualmente limitados e superados pelos acontecimentos do largo prazo.
 
Destarte, devemos apostar por estratégias mais complexas, ações mais difíceis e políticas mais exigentes que, por isso mesmo, soem oferecer melhores resultados a longo prazo. Entre elas destacaremos aqui as interculturais, interconstitucionais e inclusive as interdisciplinares. Analisemos brevemente esses dois primeiros âmbitos.
 
 
Do multiculturalismo ao interculturalismo
 
 
Comecemos com o multiculturalismo. Sem dúvida alguma, são valiosas as propostas do “multi”, “poli” e inclusive do “trans”-cultural e das políticas baseadas na mera tolerância, respeito, pacificação e negociação. Apostam legitimamente em facilitar a convivência e evitar o enfrentamento; gerindo, negociando, pacificando e delimitando as diversas realidades econômicas, demográficas, sociais, políticas e culturais que hoje –como dizíamos- estão irremissivelmente em contato e superposição.
 
Pois bem, especialmente quando já não se limitam a realidades culturais adjacentes, mas sim realidades que compartem, se superpõe ou disputam um mesmo território, as políticas multiculturais de tolerância, respeito, pacificação e negociação não asseguram o desarmamento dos conflitos –a médio e longo prazo– e no mais das vezes acabam por serem superadas.
 
Devem ser, portanto, complementadas por ações ou políticas mais complexas e profundas que podemos qualificar de “inter”. Com efeito, a negociação e a tolerância “multi”, “poli” ou “trans”cultural devem ser desenvolvidas INTERculturalmente. As diversas realidades étnicas e as identidades culturais devem projetar-se em um macroprocesso de reconhecimento mútuo que comporte autênticos diálogos e ações de auto-constituição mútua.
 
Pois bem, como vem sendo teorizado desde Hegel até Axel Honneth, não se trata tanto de gerar uma realidade ou identidade comum que substitua as precedentes.  Sobretudo, essas identidades devem incorporar em si mesmas o reconhecimento da alteridade alheia, em condição simétrica, equilibrada e justa com o reconhecimento da alteridade própria.
 
Isto inclui definir um projeto (comum, mas não monolítico) embasado no reconhecimento da diversidade compartida e na defesa de uma identidade comum, centrada precisamente em compartir a riqueza da diversidade. Como disse paradigmaticamente o zapatismo: precisamente porque somos iguais é que podemos ser diversos. Podemos traduzi-lo aqui com a fórmula: precisamente porque nos reconhecemos e construímos interculturalmente é que podemos ser e garantimos o reconhecimento das respectivas diversidades.
 
 
Interconstitucionalidade mais além do “multi”, “poli” e “trans”
 
 
Brevemente, pois não pretendo ensinar-lhes nada que já não saibam, direi algo também a respeito da interconstitucionalidade. A crescente integração de amplas zonas territoriais, que incluem diversos Estados-nações, com seus respectivos marcos teóricos jurídico-normativos, provoca significativos processos de interconstitucionalidade.


Também aqui há importantes apostas para limitar a integração jurídico-normativa a processos de mera coexistência ou tradução “poli”, “multi” e, nos casos mais valentes, transconstitucional o transjuridiscional (p.e. o Laboratório Internacional de Pesquisa sobre Transjuridicidade -UFPB-). Quer dizer, se administra e promove a convivência jurídica pacífica e com a mínima conflitualidade de diversas legitimidades normativas e “justiças materiais”. Isso é muito valioso e –como vimos com a multiculturalidade– se formula a partir de necessários valores de tolerância, respeito e negociação pacífica.

Pois bem, isso no entanto parece que não é suficiente a longo prazo, quando diversos elencos de direitos humanos (em princípio procedentes de “culturas” diferenciadas) convergem (mas também se chocam antagonicamente) para definir um elenco comum de direitos fundamentais (ou seja: efetivamente reconhecidos, incorporados e assegurados pelo nascente marco constitucional compartilhado).  Como sabem, se trata de um tipo cada vez mais relevante de justiça “material” e/ou transicional para contextos de crescente integração política e jurídica (como sucede na Unión Europea  ou em Estados com importantes minorias étnico-culturais). Assim devem superar-se o que o Professor Luiz Fernando Coelho chama antinomias dos Direitos Humanos que nascem do choque de diversas constitucionalidades que devem interconstitucionalizar-se.
 
Acreditamos que sí se radicalizan los apuntados procesos de integração politica, jurídica, normativa e constitucional, parece que –a um largo prazo- no hay suficiente con las valiosas propuestas multi-, poli- e transconstitucionais.
 
Por isto se devem tentar realizar os muito complexos e difíceis processos de interconstitucionalidade. Em tais casos, pois, não se trata tanto de uma justaposição mas de uma autêntica mescla em um mesmo território, com a complexa atividade que ele comporta.
 
Desta forma, também aqui o salto a os “fenômenos inter” nos parece inevitável. Estarão de acordo que este é o caso, por exemplo, da Comunidade Europea. O atual processo europeu de integração é todavia um marco jurídico político incompleto. Nele os juízes tiveram que ir, muitas vezes, para muito além dos próprios políticos, pois los políticos se bloquejam por as dinámicas do Estado-Nação.
 
Pessoalmente, ante os novos desafios já interconstitucionais advogo –como já o fiz anteriormente em sede de interculturalidade– por fundamentar o processo no reconhecimento mútuo e a partir de processos dialogados de auto-constituição mútua. Sem dúvida, e por exemplo na Comunidade Europea, há que se gerar um marco constitucional comum e superior ao dos Estados-nação. Mas, creio, isto deve realizar-se sobre a base do reconhecimento das alteridades reunidas que devem reconhecer reciprocamente aquelas alteridades que decidam conservar.
 
Portanto, e ainda que seja difícil levar-lhe à prática, o novo marco interconstitucional comum não deve ser abstrato nem monolítico, mas sim bem concreto, material e internamente diverso. Em termos hegelianos, há que se superar dialeticamente tanto a identidade indiferenciada e abstrata como as particularidades opostas negativamente, e fazê-lo constituindo uma nova identidade concreta e adequadamente diferenciada internamente.
 
Conclusão
 
Somos conscientes das dificuldades e dos importantes saltos ontológicos, epistemológicos, metodológicos e disciplinares implicados em nossa analogia entre interculturalidade e interconstitucionalidade. Segundo nossa análise macrofilosófica, acreditamos detectar bastantes impulsos e causas concomitantes, mas, em todo caso, se trata de uma perspectiva aberta que exige muito mais trabalho e a colaboração desde distintos âmbitos acadêmicos além de –obviamente– abertura e grandeza de olhar.
 
Enfim, e para terminar, apenas acrescentarei que desejo uma integração europeia que supere os atuais bloqueios e a crescente aversão populista eurocética. Para isto, a Europa deve dotar-se de um marco jurídico-normativo interconstitucional e intercultural, baseado no reconhecimento de que a nova igualdade e unidade tem, como condição de possibilidade, o recíproco respeito da diversidade e do princípio de subsidiariedade –hoje mais reivindicados que sistematicamente aplicados-.
 
Tudo indica que, apenas a partir do reconhecimento recíproco da diversidade e do escrupuloso respeito à autonomia das decisões segundo o princípio da subsidiariedade, se avançará sólida e pacificamente a longo prazo até uma ordem internacional mais sólida e justa. Sei que isto é muito difícil, mas só assim a Europa (e talvez amanhã a Terra inteira) poderá caminhar verdadeiramente no sentido de uma justa garantia interconstitucional, como realização histórico-efetiva de algo parecido com essa "constituição cosmopolita”, que todavia é hoje ainda uma quimera como era nos tempos de Kant. Creio que para isto é imprescindível atender aos “fenômenos inter” e, em especial às mencionadas dinâmicas interculturais, interconstitucionais e, no fundo, também interdisciplinares.
 
 
(tradução: prof. Dr. Renato C. Cardoso -UFMG- para o IV Coloquio Internacional Macrofilosófico e I Colóquio sobre Interconstitucionalidade en la Universidade do Minho -Braga, Portugal- sobre INTERCULTURALIDADE, INTERCONSTITUCIONALIDADE E INTERDISCIPLINARIDADE)


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